
Tão entusiasmados que nós andávamos com o Mundial 2010, com a selecção das quinas a fazer negaças aos demais, prometendo fulgir no Olimpo do nosso contentamento, qual refrigério para um quotidiano que nos assoberba, pejado de escolhos múltiplos nos mais variados cambiantes e que tanto podem ir do aumento do IVA no supermercado ao aumento dos transportes, da contestação dos pais ao encerramento de escolas ou dos docentes aos mega-agrupamentos, da «golden share» do governo na telenovela da PT/Telefónica ao insustentável e contínuo aumento do desemprego, das negas de concessão de crédito no mercado interbancário internacional à nossa banca à detecção de um elevado grau de irregularidades na acumulação de salários e pensões no Estado, segundo auditoria recente da Inspecção-Geral de Finanças, ou mesmo aos 1,56 milhões de euros indevidos pagos em prémios ilegais durante onze anos aos gestores da Parque Expo, enfim, até à confissão pública do nosso Presidente referindo que só é capaz de estrelar um ovo… tudo isso nos torna depressígenos, e era o “ópio do povo”, lá longe, sob as tonitruantes vuvuzelas – instrumento massacrante da audição e que à semelhança dalgumas práticas onanistas só dá prazer a quem o toca -, que nos fazia embarcar num pulcro “Sonho Africano”, já sem o pesadelo do Adamastor ao virar da Cidade do Cabo. Acreditámos ser possível arrebatar o caneco dourado, para nosso grande gáudio e salvífico processo de mitridatização, isso sim, mais do que a economia agónica vigente, conferir-nos-ia imunidade prolongada para os desmandos que povoam a nossa sobrevivência neste rincão natal que é, tão somente, o nono país mais pobre da União Europeia, à frente apenas da Bulgária, Roménia, Letónia, Lituânia, Estónia, Polónia, Hungria e Eslováquia, que são as nações de mais parcas posses da denominada ex-“Cortina de Ferro” afecta ao bloco soviético, mas, segundo as previsões de crescimento, com a perspectiva de sermos a breve prazo ultrapassados pela Eslováquia e Polónia, como o fomos recentemente pela República Checa e Eslovénia.
A culpa desta nossa desdita poderá retirar-se das explicações do Procurador-Geral da República, ao atribuir ao fado e à tristeza que lhe está colada a idiossincrasia peculiar deste povo como não há outro que lide tão mal com ele próprio, apesar de supostamente não ter motivos bastantes para tal, pois até afirma, para espanto dos cépticos, que não encontra na Europa melhor Justiça do que a portuguesa, não obstante, por exemplo, os indicadores internacionais – relatórios do CEPEJ (Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça), estudos do Banco Mundial ou análises da OCDE -, segundo sustenta Nuno Garoupa, professor de Direito na Universidade do Illinois – e que atribui tão espantosa afirmação ao que apelidou de “patriotismo serôdio” -, permitirem concluir que «a justiça portuguesa é sem dúvida uma das piores da Europa», a que não serão alheios aspectos atreitos à infindável duração dos processos, burocratização excessiva, exacerbamento de modificações legislativas e a desigualdade de oportunidades no acesso à justiça entre ricos e pobres, dentre outros factores limitativos. À semelhança aliás, do que acontece em áreas como a saúde, a educação ou a produtividade.
Mas, ultimamente, a culpa também poderá estar em Queiroz e seus apaniguados, que não souberam estar à altura das nossas esperanças, estratosfericamente alimentadas por uma comunicação social ávida de nos empolar o ego e fazer esquecer a tremedeira actual da conjuntura que cerca as nossas vidas… mas quem adora ídolos com pés de barro, mais cedo ou mais tarde só pode ver desmoronarem-se ambições oníricas alicerçadas em matéria friável. Preparámo-nos – e formataram-nos – durante semanas para que, fortes na defesa, despontasse lá na frente brumosa do nevoeiro o ansiado D. Sebastião, e resolvesse. Infelizmente, um D. Ronaldo, pouco “cristiano”, gorou todas as expectativas e ainda que não possa ser o único responsável pela fraca prestação nacional, será certamente exacerbado colocá-lo nas antípodas do seu real valor, como fizeram articulistas um pouco por todo o mundo após o jogo com a Espanha, considerando-o um “vendedor de ilusões” (e de champôs na TV) ou até uma “fraude” do futebol, já para não ir mais longe ao verberarem que «provavelmente nem precisava do duche no final do jogo e até Mandela, aos 92 anos, teria sido mais móvel em campo». Mas o timoneiro também não pode sair incólume desta mediania rasoirada, exigindo-se explicações para factos tão evidentes como as razões por que não se conseguiu marcar um único golo em três jogos, ou por que há doze jogos que não se marca de bola parada, ou por que foi designado capitão quem chega de helicóptero ao estágio… e isso tem alguma importância? Por acaso tem, porque é simbólico e vinca a diferença relativamente aos outros intervenientes, fracturando a coesão grupal, mesmo que seja apenas a nível do subconsciente, e o futebol tem uma inegável matriz colectiva, pois jamais um só jogador, ainda que dotado de talento desequilibrador, poderá fazer o que só em equipa é possível alcançar e, por incrível que pareça, por vezes o que deveria ser o elo facilitador constitui-se, pela imaturidade ou enviesamento do seu protagonismo, mais como um problema do que solução…o que o CR7/9 nunca dirá, conforme refere esta semana um articulista num conhecido semanário, é «Vão perguntar ao José Mourinho» ou «Oh Zé, assim não ganhamos!», porque aí outro galo (speciale) cantaria, já que o actual contexto de “Ronaldo e mais dez” será inevitavelmente transmudado para outro de “Zé e mais onze” e aí as birras da(s) vedeta(s) poderão conduzir o artista… quem sabe, e passe a índole hiperbólica da ideia, de volta aos Andorinhas e a desfilar no Carnaval do Funchal de braço dado com o tio Alberto João.
Porém, e em contraponto ao sublimar das expectativas dos adeptos, nunca pareceu que os jogadores ricos da “amada” selecção de um pobre país – embolsando 800 € diários, quase dois salários mínimos por dia, que não será propriamente pecúlio despiciendo em tempo de vacas magras, não obstante os ordenados e “luvas” megalomaníacos usufruídos na profissão… (muita gente nunca percebeu a razão de ser necessário pagar para vestir a camisola nacional, já que a selecção não é um clube!) – almejasse mais do que sair de cabeça erguida desta competição mundial, aliás na senda, também ela pequena, do veiculado quer pelo próprio seleccionador quer pelo responsável-mor da Federação, já deveras satisfeitos pela obtenção do que apelidaram ser os “objectivos mínimos”. E se formos honestos, aquiesceremos certamente que, face ao produzido, não merecíamos mais, voltando para casa mais pequenos do que partimos… afinal, em consonância com uma real dimensão nos múltiplos contextos da nossa existência.
Extrapolando para a sociedade hodierna em geral, escusado será dizer que nenhuma mais-valia será acrescentada à nossa felicidade terráquea se persistirmos condescendentes com uma vasta galeria de titãs que por aí orbita, nos píncaros das altitudes e sobranceiros para o nosso mundo chão, num mecanismo de servilismo a gente que, com o inexorável avanço (enviesado) do tempo, será até, quiçá, transmutada em bronze… coberto de cocó de pombo.