Releio sempre, com o maior dos prazeres, a “Carta a meus filhos/ Sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena, esse poeta maior da Literatura Portuguesa, tão injustamente esquecido, duplamente penalizado pelo regime de Salazar e seus seguidores e pelos sucessivos ministros da educação do nosso país.
Por exemplo, ainda recentemente, quando o actual Presidente da República e o Primeiro-Ministro estiveram pela América, perderam uma óptima ocasião para relembrar e reconhecer o seu mérito. Aliás, Jorge de Sena foi um dos primeiros professores universitários de origem portuguesa a trabalhar em Universidades americanas na área da Literatura Portuguesa. Com efeito, aceitou o convite para leccionar Literatura de Língua Portuguesa, na Universidade de Wisconsin, de onde transitou para a da Califórnia, como professor catedrático efectivo de Literatura Comparada.
Hoje, contudo, prefiro lembrá-lo como poeta e falar da tal Carta a seus filhos, uma espécie de manual do cidadão, cheio de actualidade, pois o que realmente é importante na vida, nunca morre. Começa por interrogar-se e acreditar que é possível que o mundo dos filhos seja aquele que ele deseja para eles:
“…Um simples mundo,/onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém/de nada haver que não seja simples e natural.”
Mas, importante, importante, nem é tanto saber como será o mundo que os espera, mas, sobretudo que tenham consciência de que nunca devem deixar de lutar “por tudo quanto lhes pareça a liberdade e a justiça,/ ou mais que qualquer delas uma fiel/ dedicação à honra de estar vivo.” Relembra Jorge de Sena como a humanidade está saturada de “sacrificados, torturados, espancados,/e entregues hipocritamente à secular justiça” pelo crime de terem pensado assim e de terem amado “o seu semelhante no que ele tinha de único,/ de insólito, de livre, de diferente. Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, / a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas/ à fome irrespondível que lhes roía as entranhas”.
Haverá sempre um tempo para duvidarmos, para nos interrogarmos, mas nada será tão importante como a felicidade de estarmos vivos, de podermos fruir de uma vida que “nos é cedida/ para a guardarmos respeitosamente/ em memória do sangue que nos corre nas veias,/ da nossa carne que foi outra, do amor que/ outros não amaram porque lho roubaram.”
Nunca esqueçamos que nenhum Juízo Final devolverá aos injustiçados, aos perseguidos, aos mal-amados deste mundo “aquele instante que não viveram, aquele objecto/ que não fruíram, aquele gesto / de amor que fariam «amanhã».
Terminemos, com esta alegria de pensarmos e de podermos afirmar que «nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa – essa alegria.»