
- …pela liberdade sem fronteiras/
- pelas manhãs de sol sem mácula de grades”
- Daniel Filipe
- Ler é descobrir maneiras de viver
- L.M.
Num texto, há sempre vários textos e existem vários caminhos para descobrirmos o nosso. Quando um escritor combina as palavras, carrega-as das suas experiências, das suas emoções, da sua maneira de estar na vida, de influências plurais: sociais, políticas, religiosas, culturais, económicas… É sempre possível descobrirem-se todas essas matérias numa mensagem construída com o apoio da gramática (implícita ou explícita)… e/ou ainda no gozo de transgredir a norma.
As palavras encadeiam-se num quebra-cabeças fascinante. E a leitura não é mais do que entrar no jogo do autor: o jogo de desmontar o puzzle que ele inventou.
O texto literário é uma obra de arte com a subjectividade própria de toda a criação, mas também portador de técnicas e de marcas que influenciaram o autor. Isso não impede, no entanto, que cada leitor faça a sua leitura dos textos e os recrie. A observância de algumas pistas poderá ajudar-nos a ler com mais prazer e mais proveito.
1 Comecemos por uma leitura lenta e silenciosa com o objectivo de descobrirmos como as palavras se ligam em conjuntos, pois, isoladas, perdem muito do seu relevo. Descubramos as suas alianças.
2 Façamos uma nova leitura para sublinharmos as palavras desconhecidas e as expressões que tivermos mais dificuldade em entender.
3 Depois de tentarmos perceber o sentido geral do texto, poderemos eventualmente consultar o dicionário para decifrarmos o significado das palavras que desconhecíamos, escolhendo o que nos parecer enquadrar-se melhor no contexto. Façamos o respectivo registo. A consulta do dicionário, no entanto, só deverá ser feita em último recurso, pois poderá, acaso, contribuir para a desmotivação da leitura.
Quase sempre é possível fazermos a nossa leitura, só com as palavras que conhecemos e com as informações que as nossas vivências nos foram fornecendo. A não ser no caso de especialistas, que têm de ser rigorosos nas suas análises, tenhamos a liberdade de ler consoante as nossas informações. Um dia, quando ganharmos gosto pela leitura, poderemos sempre rever as nossas interpretações. Nada mais nefasto do que teimarmos em ler o que não entendemos. Só gostamos do que percebemos. Se forçarmos e exagerarmos, corremos o risco de nunca mais termos vontade de pegar num livro.
4 Impõe-se nova leitura para sublinharmos as expressões que nos tenham surpreendido pela beleza e/ou pela novidade.
É natural que sintamos algumas dificuldades, nuns casos mais acentuadas que noutros. Não devemos desanimar por isso, pois entrámos no domínio da intimidade do autor. As palavras significam agora o que ele quis que significassem.
As fugidias e frágeis palavras são o material da arte do escritor. Os autores recriam, inventam. É a conotação. Mas, não é obrigatório lermos as palavras com o mesmo sentido com que o escritor as utilizou. Os seus significados podem e devem ser recriados por quem as aprecia. Assim, o leitor pode fazer a sua leitura. Pode criar o seu texto. De resto, os jogos nunca são fáceis de jogar e a leitura é um dos jogos mais desafiadores.
Devemos também evitar a obsessão de apenas querermos decifrar a mensagem. Isso pode matar o prazer de ler. Como acontece com o gramaticismo, isto é, o texto ser estudado apenas na sua vertente gramatical, às vezes desligada dos outros conteúdos. Como obra de arte o texto desafia a nossa inteligência e sensibilidade. Ler também tem de ser uma arte. Tanto o escritor como o leitor são detentores de liberdades que cada um utilizará à sua maneira.
5 Passemos à etapa seguinte: a das interrogações que nos ajudem a entender o mundo do autor. Escreveu por quê? Usou esta forma por quê? Escolheu estas palavras e juntou-as deste modo por quê? Que efeitos pretendeu criar? Para quem escreveu? Conseguiu fazer passar as suas intenções? Conseguiu criar beleza? A que época literária pertence? Quem foram os seus contemporâneos? Como viviam as pessoas desse tempo?
Enfim, um sem número de interrogações que nos ajudarão a ler o texto. Também levaremos a cabo, seguindo este método, a realização de um dos mais importantes objectivos da leitura: o nosso enriquecimento pelo convívio com estéticas e éticas múltiplas, com outras maneiras de estar na vida.
É a aprendizagem do espírito crítico, da liberdade, do gosto pela informação, pela investigação, pela solidariedade, pela tolerância. Ler também aperfeiçoa a cidadania. No acto da escrita estiveram presentes o prazer e a febre de comunicar. O mesmo prazer e a mesma febre requeridos pelo acto de ler. A indiferença, a monotonia, ou os exercícios que as provoquem, matam o prazer de ler.
6 E vem outro desafio: descobrir a ideia que originou o texto.
O autor, ao escrever, sente um impulso íntimo. Costuma-se dizer que teve uma inspiração. Há qualquer coisa que se acende no seu cérebro, que bate no seu coração e o obriga a criar. Pode ser uma febre repentina como pode ser o resultado de uma lenta fermentação. Esse impulso tem o nome de tema.
7 A descoberta do assunto é o passo seguinte. O assunto é o resumo do essencial do texto.
8 Outra fase obrigatória do jogo: a descoberta das chamadas palavras-chaves, aquelas que encerram o sentido profundo do texto. Os outros vocábulos são seus subsidiários.
9 O passo seguinte, uma etapa mais avançada, mais adequada a especialistas ou estudiosos, consistirá em atentarmos na influência da escolha das palavras e das suas combinações e significados. Será a gramática indiferente ao texto? Por outras palavras: em que medida a fonética, a morfologia, a sintaxe e a semântica poderão ajudar a nossa leitura? As palavras e os sons têm cargas positivas e negativas. Em momentos de alegria, apetecem-nos sons abertos, sonoros, e palavras alegres.
Mas, em momentos de infelicidade, a nossa alma pede-nos sons tristes ou neutros e vocábulos que lembrem dor. Que sons e que palavras predominam no texto? Ajudará, se o lermos em voz alta.
Da fonética, passemos à morfologia.
Que verbos, substantivos, adjectivos, advérbios e conjunções se impuseram ao autor? Que substantivos? Que adjectivos? Que advérbios? Que conjunções?
Saltemos da morfologia para a sintaxe: os períodos, as orações, os sujeitos, os predicados, os complementos.
Enfim, estamos quase a completar o puzzle.
Até os modos e os tempos dos verbos ajudam a entender as ideias do autor.
10 Por fim, será bom interrogarmo-nos sobre o plano pensado para o texto. Uma das fases mais interessantes deste jogo que é a leitura, será tentarmos descobrir o plano a que obedeceu o desenvolvimento da ideia. Também já o fomos aflorando de modo a enriquecer o produto final. Se juntarmos ao cuidado formal, a emoção, encontramos os principais ingredientes de uma obra de arte. Só os eleitos conseguem juntar num mesmo texto estes fortes ingredientes: o bom aproveitamento das palavras, um bom plano e uma boa dose de emoção. Quando acontece, fundo e forma fundem-se e ressurgem burilados como um diamante dos mais puros. Também só alguns terão o privilégio de fruir o prazer de recriá-lo pela leitura.
Dá trabalho? O que é que conseguimos sem trabalho? Mais: ler, não é devorar páginas e páginas aos milhares; ler é, sobretudo, saborear. A arte de escrever complementa-se com a arte de ler. Mais vale lermos poucas obras, mas bem, com o prazer de as fruirmos e as tornarmos nossas, do que devorarmos volumes, sem proveito.
LEONEL MARCELINO